Friozinho impertinente... (24 de julho de 1957)

Nós, aqui da região, pouco habituados às baixas temperaturas não estamos lá mui satisfeitos com o friozinho impertinente que ultimamente domina tudo. Na madrugada de domingo (21/7/1957), os barômetros acusaram a temperatura de um grau abaixo de zero, logo pela manhã. Foi realmente uma onda de frio bastante rude aqui para a nossa zona, melhor sentida por aquêles que residem em casas de táboas, dessas em que o vento penetra pelo telhado, pelo assoalho, pelas frestas de janelas e portas, por tôda a casa, enfim.

É vento da famosa “esquina dos ventos uivantes”? Tem cortado mais do que navalhas de aço sueco!

Os que possuem agasalhos suficientes, tiveram oportunidade de utilizá-los nos últimos dias. Os outros, que estão em “deficit” nesse setor, sofreram mais do que camelhos nas nevadas da Groelândia.

Domingo passado, nas proximidades do Mercado Municipal, um trator com um reboque conduziam alguns cacarecos, que representavam u’a mudança de um de nossos caboclos da lavoura. Alguns colchões em misero estado, umas cadeiras velhas e outros apetrechos que constituiam, por certo, o patrimônio de uma pobre família. Para não fugir à tradição, cinco ou seis crianças, sujas e esfarrapadas, tiritando de frio, sob a carroceria do veiculo. Um quadro verdadeiramente contristador, o ver-se a mulher magra procurando agasalhar sòmente com o calor do corpo, uma criancinha que não teria mais do que um ano, enquanto as outras, sem quaisquer agasalhos, tremiam de frio, com os labiozinhos côr de amora “passadas”!

Todos os que passavam pelo local, ficavam penalizados com o quadro e o autor destas linhas lamentava intimamente não dispor de possibilidades para amenizar, por pouco que fosse o frio sofrido pelas criancinhas referidas. Nisto, passou um cidadão de regular obesidade, vestindo um confortável sobretudo de grossa lã amarelada, luvas, cachecol e chapéu. Olhou durante alguns momentos para o desolador quadro tão brasileiro que tinha ante os olhos e não se conteve: adentrou o Mercado, de lá voltando pouco depois, com alguns agasalhos novos, malha de algodão, dêsses que se vendem nos bazares populares. Distribuiu a cada criança um daquêles objetos, que se não chegasse a completar inteiramente as necessidades ante a rudeza do frio, pelo menos trouxeram um pouco de calor físico e espiritual à inditosa família.

Não sabemos e nem procuramos saber quem foi o referido cidadão, nem quanto gastou com êsse generoso ato, procedido anonimanente. O que nos encheu de satisfação, foi o espírito altruístico dêsse cavalheiro, que foi capaz de tomar uma iniciativa tão bela e tão humana.

Esta crônica, por certo, fazendo menção a um fato tão nobre e digno, melhor ficaria se fosse narrada pela pena de nosso colaborador reverendo Álvaro Simões, que com tanta fluência e facilidade aborda questões dessa natureza. Talvez por egoismo, quisemos nós próprios trazê-lá a conhecimento público. Isto porque representou o ato dêsse homem, um gesto da verdadeira caridade, sem alardes ou propaganda, praticando-a como deve ser praticada. Porque ficamos comovidos com a atitude dêsse homem, que, mesmo estando bem vestido e bem resguardado do frio intenso e impertinente que dominava nossa cidade na manhã de domingo último, foi capaz de perceber a necessidade alheia, dando um pouco daquilo que possuia, àquêles que se encontravam na iminência de morrer de frio.

Oxalá o gesto tenha calado na consciência daquêles que, como o reporter, presenciaram tão magnífico e humanitário gesto.

Extraído do Correio de Marília de 24 de julho de 1957

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