Um passado no presente (9 de novembro de 1957)

Curioso, como algum fato passado, enterrado nas gavetas do esquecimento normal, possa transportar uma pessoa a recordações pretéritas das mais vivas!

Assistimos na última quinta-feira, no Cine São Luiz, como “aperitivo” do estupendo filme de James Mason intitulado “Delírio da Loucura”, um interessante “short” colorido. A curta metragem referida, colocou em evidencia determinadas telas elaboradas por um artista do século XVII na Itália, cuja memória e arte hoje são consagradas em todo o mundo. Apresentou aquilo que se poderia chamar de uma história, um acontecimento natural numa vida: o retorno de um ex-combatente à legendária Itália, com o espírito de observar no presente, aquilo que êle vira por acaso no passado, numa época de guerra na qual participava.

O homem principal, que apareceu como soldado adentrando o local em apreço, retornou, conforme nos mostrou o filme, alguns anos depois, como um apreciador das artes do pincél.

Assistimos o filme e não conseguimos evitar a vibração de nossa lembrança, que, à revelia, nos transportou também para o ido ano de 1945, quando estivemos no mesmo local e apreciamos aquela maravilhosa coleção de pinturas célebres e famosas. A focalização da objetiva cinematográfica nos trouxe a certeza de uma filmagem “in loco”, sem qualquer artimanha ou “montagem”. Diversos ângulos da cidade, o famoso Rio Arno, as ruas apertadas e tradicionalmente européias, nos acarretaram uma saudade indiscritível. Chama-se Palácio Pitti o local focalizado, embora Ramos Gadelha, o narrador da película tivesse omitido o nome.

As recordações nos foram mais acentuadas e indeléveis, porque ali entramos por acaso, “fazendo hora” que estávamos, com dois dias de folga na retaguarda, instalados no “American Rest Camp” em Florença. Leigos que somos em matéria de pintura, não conseguimos apreciar artisticamente o valor da fenomenal coleção de quadros ali existente. No entanto, dentro de nossas observações apenas normais, ficamos verdadeiramente maravilhados com tudo aquilo que vimos e a lembrança da visita ao Palácio Pitti permaneceu conosco por muito tempo. Isto porque em matéria de arte, duas coisas sempre nos calaram mais profundamente na Itália: O Palácio Pitti com suas telas magistrais e a beleza do Cemitério de Gênova, o famoso “Campo Santo di Staglieno”.

Sentimo-nos, confessamos, como uma criança que se alça nas asas da fantasia, imaginando coisas impossíveis e irreais. Voltamos ao passado e enquanto o foco projetava na “panorâmica” as imagens daquelas maravilhas tôdas, recordávamos o nosso andar desajeitado dentro daquêle recinto maravilhoso, arrastando os pesados galochoes com barro e neve, boquiabertos ante tanta beleza artística. Lembramo-nos das explicações do “guida” (guia) do Palácio, atenciosas e precisas, tão minuciosas que nos confundiam. Recordamo-nos das exclamações de espanto de uma primeiro tenente enfermeira americana que tentava incutir-nos em nossa mente caipira, a apreciação dos ângulos das pinturas, explicando-nos nu’a mistura sofrível de inglês e italiano as partes técnicas da arte e os motivos primordiais de apreciações. Lembramo-nos ainda da inevitável admiração que externamos, ao sabermos dos preços em dólares de diversos daquêles quadros, embora os mesmos não fossem negociáveis.

Durante alguns minutos, ante-ontem (7/11/1957), no Cine São Luiz, vivemos um pouco do passado em pleno presente.

Há algum tempo atrás, conversando com o pintor Brás Alécio, fizemos menção ao Palácio Pitti e à sua maravilhosa coleção, tentando descrever com nossa fraca lembrança, tôda aquela beleza. Se Brás Alécio assistiu o filme referido, deve ter melhor compreendido aquela nossa conversação.

Por isso, repetimos aqui aquilo que dissemos na ocasião ao Brás: Ou porque somos caipiras, ou porque vimos naquela oportunidade tantas obras de arte, até hoje não conseguimos compreender isso que se chama “arte moderna”, que, para nós, sinceramente, significa uma verdadeira estupidez dentro da nobre e difícil arte da pintura.

Extraído do Correio de Marília de 9 de novembro de 1957

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