Ser póbre é ser malabarista (6 de dezembro de 1958)

Em conversa conosco, mostrava-se um amigo, admirado de que ele, com apenas dois filhos e ganhando relativamente bem, não conseguiu nada mais fazer do que tratar a família com palpável dificuldade, enquanto outras pessoas, com família mais numerosa e ganhando menos, conseguem até dar-se ao luxo de possuir casa própria.

De fato, têm razão, apenas que não se dignou encarar as coisas como elas realmente são. Por exemplo, a outra pessoa citada pelo nosso amigo, embora “dando-se ao luxo de possuir casa própria”, leva, forçosamente a vida de maneira diversa, não vivendo, mas apenas vegetando. Um mês paga a farmácia e não paga o armazém. Outro, paga o armazém e não paga o açougue. No outro, paga o açougue e não paga a quitanda. E assim por diante. Os filhos vivem mal vestidos e sub-alimentados.

Milagre ninguém faz, a não ser Deus. Os filhos da “outra pessoa” não podem usar calçados, “embora morem em casa própria”, não vão ao cinema e nada mais estudam do que o elementar curso primário.

Só assim se é possível, portanto, explicar o “fenômeno” que tanto impressionou nosso interlocutor. Isto porque, ser póbre, hoje em dia, é ser malabarista e malabarista de primeira categoria. Senão, vejamos:

Supondo que uma família com três filhos menores ganhe, não o salário mínimo, mas seis mil cruzeiros, como será distribuída éssa importância, ante os gastos naturais e forçados(?) Numa “ginástica” dos diabos, o póbre homem deverá pagar no mínimo 2 mil cruzeiros por uma “tapera” de táboas, num bairro distante da cidade. O ordenado já ficou reduzido a 4 mil cruzeiros. Óra, uma família de três filhos (5 pessoas ao todo), come com cautela (e sem desperdício), 15 quilos de arroz, 5 de feijão, 2 latas de manteiga (com miséria, neste caso), cebolas, café, etc, etc., etc.. Isto tudo, comprando só o mínimo e escolhendo o pior artigo pelo preço mais barato possível, custa aproximadamente 3 mil cruzeiros (por baixo, bem entendido). Já sobrará apenas mil cruzeiros. Leite, lenha, luz, água, não se contando pequenas extravagâncias normais na vida de todo o ser humano, não se incluindo taxas escolares, cadernos, uniformes, etc., é possível viver um cidadão nessas condições?

E observe-se que fizemos a hipótese da pessoa ganhar seis mil cruzeiros, quantia éssa que poucos bons e antigos empregados de nosso comércio ou indústria conseguem perceber!

Isso, sem contar-se com um simples xaropinho para tosse, que custa 80 cruzeiros. E os calçados(?) E as roupas? E a necessidade de adquirir, vez por outra uma coisa rara e extraordinária, como duas castanhas agora para o Natal? E se o homem fumar?

Também isso não é nada. O pior, o pior mesmo, é quando o póbre fica doente. Serviços médicos custam fortunas. Medicamentos, idem. Uma consulta fica em 300 cruzeiros, quando não fica em quinhentos e quando não sai até em mil cruzeiros, dependendo do volume da conta em face do número de visitas. Serviços dentários, idem. Uma chapa de Raio X já passa de meio “conto de réis”, quantia que um operário trabalha quasi uma semana para ganhar. E a cirurgia, quando é preciso? Póbre póde ficar doente? Uma operação, conforme o caso, fica até em 20 ou 30 mil cruzeiros, importância que muita gente não ganha em seis meses ou mais de trabalho. Os serviços hospitalares também são caríssimos.

Por aí, verá nosso amigo, que tudo está certo (infelizmente), para os póbres. Muitos médicos falam em 5, 10, 20 contos para o doente, assim tão calmamente, que o doente pensa que os mesmos estão brincando! Hoje até a morte está cara, até a morte subiu de preço. Em São Paulo, por exemplo, o humorismo de algum já declarou: “De agora em diante acabou o perigo de herdeiros matarem-se entre sí por causa da herança; não haverá mais herança; acabará com o próprio enterro”.

Resta ainda um consôlo ao póbre: que o tal de congelamento tenha vida longa e que de fato o beneficie um pouco, com o aumento do salário mínimo... porque fazer malabarismo também cansa!

Extraído do Correio de Marília de 6 de dezembro de 1958

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