Vale a pena ser cientista? (15 de julho de 1959)

De fato: a pergunta que nos serve de epígrafe, ao que parece, oculta uma segunda intenção. E realmente a esconde.

Repetimo-la: Vale a pena ser cientista?

Vale – responderão quasi todos; ou todos.

Nem sempre – responderemos nós.

Por certo, não existirá um pai, u’a mãe, irmão, cunhado ou primo, que não estufe os pulmões, para declarar euforicamente na primeira oportunidade que se lhe apresentar, que “fulano, famoso cientista”, é seu parente em tal gráu.

Encarando a questão sob êsse aspecto, vale a pena ser cientista; pelo menos para os parentes do mesmo, para os que se dizem seus amigos e privam de sua amizade. Mas a pergunta é mais objetiva, mais clara, mais suscinta: sob o lado de observação real, vale a pena ser cientista?

Nós provaremos que nem sempre, conforme asseveramos. E citaremos, para corroborar o fato, apenas um único exemplo. Irrefutável, lógico, preciso. Limpo como as águas que jorram das cachoeiras. Claro como a luz fluorescente. Inapagável, como a tinta “nankin”. Matemático, como dois e dois são quatro. Irretorquível, como o “goal” confirmado por um árbitro da Federação Paulista de Futeból.

Nosso exemplo: César Lattes. César Lattes, físico patrício que deveria orgulhar o Brasil, porque em seu campo de pesquisa técnicas e científicas, já projetou o renome da ciência nacional além-fronteiras. Embasbacou meio mundo, deixando boquiabertos, cientistas “tarimbados”, renomados, famosos, extraordinários. Paralizou até cérebros habituados a ciência, decanos da física universal. E quem reconheceu seus préstimos à própria ciência, quem reconheceu seus serviços ao Brasil? Quem? Pergunte-se a um escolar qualquer se ele sabe que é César Lattes. Inclusive aos do curso primário que “escrevem” fatos ligados com História da Civilização e que “sabem” abordar passagens da própria História Romana, através de jornaizinhos escolares. Perguntem mesmo a alguns contadores e professores normalistas, até a alguns cidadãos considerados cultos, o que sabem sobre César Lattes. Não é uma figura histórica do passado. É um vulto do presente, que se não projeta como deve, por acanhamento ou modéstia. Nós pensamos que é por vergonha de como é considerado, como é tratado, como é assistido pelos poderes públicos!

Pois bem: César Lattes assombrou há poucos anos os cientistas dos Estados Unidos. Foi consagrado. Foi respeitado. Foi cultuado pelo seu talento, pelo seu sacerdócio no campo da física, enriquecendo a fonte dêsses estudos. E regressou ao Brasil. Deram-lhe um laboratório. Obsoleto. Do tempo do Império. Com aparelhos que não funcionam. E um ordenado. Pequeno, diga-se de passagem.

Ninguém se lembrou do cientista, do seu nome, de sua capacidade, de seu devotamento, de importância. Afóra as noticias corriqueiras da imprensa, ninguém mais se preocupou com esse jovem brasileiro que engrandeceu o Brasil nos Estados e que é diminuído pelo Brasil dentro próprio Brasil!

César Lattis fechou-se num mutismo paquidérmico. Aceitou tudo que lhe foi dado provar, com a resignação de um beneditino. Leciona apenas, cingindo-se aos programas elaborados, cada ano mudados mais e cada ano piorados mais. É um professor apenas, na Universidade do Brasil. Um cérebro, ombreado ao lado dos demais professores, alguns ordinariamente comuns.

Vai sair do Rio de Janeiro. Virá para nosso Estado, para lecionar na Universidade de São Paulo. Continuará a ser um simples professor e ganhará 22 mil cruzeiros por mês! Como se vê, ganhará quasi como um jogador de futebol de um grande time da paulicéia! Não é uma beleza?

Agora, repizamos a pergunta: Vale a pena ser cientista?

Claro que nem sempre; da mesma maneira que não vale ser defensor da Pátria, nada vale ser “pracinha” da FEB. O que vale, não tenham a menor dúvida, é ser jogador de futeból. E se for “campeão do mundo”, então, o valor é maior ainda...

Extraído do Correio de Marília de 15 de julho de 1959

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