O galo velho do Rio Tibiriçá (25 de fevereiro de 1977)



Sim, foi isto que eu disse dia outro ao negrinho João.

- Olhe, vou escrever uma crônica sobre esse galo velho.

João olhou espantado, arregalando os olhos, fazendo realçar o branco dos mesmos, contrastando com o ébano da pele, reluzente de suor. E arriscou a pergunta, com indisfarçavel desconfiança.

- No jornal?

- Sim, no jornal – disse eu.

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E expliquei ao pretinho, que ouviu sem entender muito, mas com bastante atenção.

- Os americanos costumavam dar um valor muito importante, ao lema “envelhecer com dignidade”, como a premiar respeitosamente o final dos anos das criaturas humanas. Uma espécie de respeito e gratidão pelo que fizeram os entes queridos, durante uma vida de labutas. Ou uma demonstração de agradecimento e de veneração, pela continuidade e perpetuação da espécie humana. Ou, mais do que isso, o testemunho do verdadeiro sentimento de cristandade, que se traduz no amor e no respeito aos semelhantes e na veneração para com os mais idosos…

O negrinho ouviu sem dizer nada e parece-me que conseguiu entender tudo muito bem. Nada respondeu, nada arguiu também.

Disse ao João que o jornalista tem também seus momentos em que o sentimento fala alto e que ele transporta para os artigos que escreve não só os pensamentos, mas, também, muitas vezes, pedaços do próprio Ego e lascas de seus próprios sentimentos, colocando mais calor de humildade, de respeito e de humildade, na exteriorização de pontos de vista: é o lado humano, que não se reveste, nem se inverte e não se perverte.

Esta a razão de uma crônica sobre o galo velho do rio Tibiriçá.

O galo velho do terreiro do Bar do Osmar, na rodoviária que liga Marília a Guarantã.

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Deve ter aproximadamente 8 anos de idade o referido galináceo. Senão tiver mais.

Proporcionalmente, representa mais ou menos 90 ou 100 anos para uma criatura humana.

O galo velho está caduco, cego de um olho, sinil há muito tempo.

Tropego como os homens muito velhos, em que os pés doem, não apresentam firmeza e dificilmente sustentam o corpo ou garantem a livre movimentação dos passos.

Assim está o galo velho do bar do Osmar.

As esporas muito grandes, são o mesmo do que a certidão de nascimento e provam uma idade provecta do galináceo. A crista é caida e o apêndice cristaceo de sob o pescoço, tem uma dimensão gigantesca, reforçando a documentação das esporas, que prova o avanço da idade.

Não é mais o senhor do terreiro, mas nota-se que no passado foi imponente, forte, bonito, viril, importante e respeitado. Hoje, um farrapo da raça.

Os passos são tropegos e titubeantes, como se estivesse semi-embriagado. Os movimentos são lerdos como dos velhos, sem a agilidade própria dos novos.

Perde na luta pela conquista de alimentos, pois sua lerdeza lhe traz desvantagens. E quando consegue antepor-se aos franguinhos, às galinhas e mesmo aos outros galos, conseguindo catar sua migalha, faz o mesmo que os velhos em caduquice, que imitam as crianças: come ou tenta guardar avaramente, com receio de que lhe roubem o alimento.

Não disputa mais nada, é indiferente ao exército de galinhas e frangas que tem ao seu lado, indiferente aos cães e só evita as pessoas, não tanto pela arisquês, mas antes de tudo, pelo instinto de conservação.

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Dentre os galináceos, quiçá seja esse galo velho, o único sobre a terra, que está desfrutando o direito preconizado pelos norte-americanos: envelhecer com dignidade.

Extraído do Correio de Marília de 25 de fevereiro de 1977

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