Ossos do ofício (24 de outubro de 1974)


Todas as profissões têm seus espinhos, esse estado de coisas que se convencionou chamar de “ossos do ofício”.

Os “ossos do ofício” representam-se pelas adversidades, pelo inesperado, pelas consequências contrárias, por resultados negativos e “dores de cabeça” advindas do exercício de uma profissão, qualquer que seja ela.

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É uma espécie de ônus, que o exercício de um cargo acarreta e, se assim não fôra, a execução de toda e qualquer atividade constituiria então um “mar de rosas”, uma “moleza”.

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Contou-me um amigo, cirurgião-dentista, que, após receber seu diploma, “mandou-me” para uma cidadezinha do interior do Paraná, onde abriu consultório. O pai havia-lhe custeado todo o equipamento, que adquiriu em São Paulo. Tudo moderno, completo, de último tipo.

O trabalho da montagem e instalação do consultório demandou dois dias e no terceiro, quando tudo estava em ordem, o novo “tiradentes” dirigiu-se logo cedinho para iniciar-se nas atividades profissionais.

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Contou-me que não se continha de contentamento e que mal poderia disfarçar a ansiedade, em ver surgir a pessoa que viria a ser “o primeiro cliente”.

Ficava um tempo no interior da casa, depois saia para a porta, plantava-se no passeio com o avental branco novinho em folha, tentanto despertar as atenções dos vizinhos e de quem transitava pela rua.

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O relógio marcava quase meio-dia e resolveu almoçar, um tanto decepcionado, por não ter sido procurado por nenhuma pessoa. Ao sair, fechou a porta e colocou um cartaz que havia mandado confeccionar: “Fechado para o almoço, das 11 às 13 horas”.

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Propositadamente, não trocou o avental pelo paletó e assim, uniformizado, dirigiu-se para o hotelzinho onde estava hospedado. Seria a primeira vez que a proprietária do hotel e os demais hóspedes o iriam ver “fardado de dentista”.

Quando chegou à sala de refeições, notou satisfeito que havia despertado as atenções, pois já era ali conhecido da maioria dos hóspedes, mas nenhum deles o havia visto ostentando o uniforme profissional – calças e sapatos brancos e avental.

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Após o almoço, retornou ao consultório.

Momentos depois, adentraram no local uma senhora de meia idade, caprichosamente bem vestida, acompanhada de uma moça duns 18 anos, muito bonita e muito bem feita de corpo. Atendeu-as solicitamente e a mulher explicou que precisava extrair um dente da filha, pois vinha sentindo muitas dores.

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A satisfação do profissional foi dupla: aparecera o primeiro serviço e por sinal a primeira cliente, muito “boazuda”.

O dentista fez a moça acomodar-se e foi buscar uma cadeira para a “velha”. Lavou cuidadosamente as mãos, fazendo tudo para chamar as atenções pelo cuidado e asseio. E principiou o exame, identificando o canino a ser extraido.

Anestesiou convenientemente, aguardando o espaço-tempo necessário. Quando o momento era oportuno, fez o descarne preliminar e lançou mão do boticão.

Puxou para um lado, torceu para o outro, fez força daqui, de lá e nada do dente sair. Nem aluia. O homem suava e precisou reforçar a anestesia. Lutou por mais de quarenta minutos sem conseguir e percebeu que estavam os três nervosos: a mulher, a cliente e ele próprio.

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Começou a pensar nas consequências de um erro profissional e no seu próprio “fiasco”. Tomou a decisão honesta de confessar à mulher que o caso estava difícil para ele e que iria consultar um colega mais experimentado. E foi correndo buscar um outro dentista. Este veio, apanhou o boticão e “largou brasa”, mas não conseguiu extrair o dente. Desistiu e recomendou a feitura de uma radiografia, para melhor conhecer a raiz do canino.

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Isto foi feito e o Raio X mostrou o dente ligado no maxilar, como um apêndice autêntico. No dia seguinte, o dentista mais velho teve que proceder uma cirurgia, para serrar o dente do osso do maxilar.

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O dentista ficou tão apavorado com o insucesso e tão envergonhado com o fracasso, que acabou mudando para outra cidade.

Quando contou-me o caso, limitei-me a dizer-lhe:

- São “ossos do ofício”.

Extraído do Correio de Marília de 24 de outubro de 1974

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