Um papai noel diferente (19 de dezembro de 1974)


Isto aconteceu há muitos anos, num pequeno sítio, distante oito quilômetros da cidade de Cafelândia.

Um menino, cursando já o terceiro ano primário de escola rural, conseguira aprender a lenda do Papai Noel, ficção que a maioria das crianças da lavoura, na época, ignoravam completamente.

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Órfão de mãe, o menino pobre viu sentir dentro de sí aquele desejo magnifico de amor, pretendendo ser o Papai Noel dos dois irmãos menores, que não tinham a mínima lembrança da própria mãe.

E o menino chamou a irmã e o irmão menores do que e maiores do que os outros dois, pedindo o natural sigilo à estória de Papai Noel e à intenção de dar presentes aos dois pequeninos.

Os outros dois, uma menina e um menino, acataram a ideia do irmão maior, o menino desta recordação.

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Da mesma maneira da fábula dos ratos, que pretendiam amarrar um sininho no pescoço do gato, o desânimo tomou conta dos três confabuladores, quando um deles lembrou que para comprar os presentes havia necessidade de dinheiro.

O menino ficou triste, porque não tinha dinheiro para comprar os presentes de Papai Noel, que deveria dar, sob engano, aos dois pequeninos.

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Enquanto os outros dois que haviam merecido a confidência olvidavam completamente o assunto, o menino via crescer sua angústia e desilusão pela realidade crua em não poder consumar o seu objetivo de dar presentes de Papai Noel aos dois irmãozinhos menores e sem mãe.

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O menino pobre sofria intimamente, rebuscando na ideia um meio ou uma fórmula que lhe pudesse ensejar o conseguimento de dinheiro – não tinha a mínima ideia de quanto – para comprar os dois presentes de Papai Noel.

Pedir ao pai não adiantava porque sabia que o pai não tinha e, mesmo que tivesse, julgava que o pai não iria acreditar na estória de Papai Noel, que a professora havia contado na escola.

Pedir emprestado sabia que não poderia, pois não iria dispor de meios para o posterior pagamento do empréstimo.

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Pensou, pensou e acabou por encontrar a solução que lhe pareceu adequada. Chamou a irmã, aquela que não sabia da intenção. Expôs o plano: ele, o menino, faria um facão de madeira, que seria o presente do irmãozinho e a menina faria uma boneca de pano, que seria o presente da irmãzinha.

Mas a irmã alegou que não sabia fazer boneca e, ante a insistência do menino, rebelou-se dizendo que não faria mesmo e ameaçou de contar aos dois pequeninos a manobra e a mentira.

O menino convenceu-a a calar-se sob condições de que ela não faria a boneca e o caso ficava encerrado.

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Nas horas de folga, durante mais de uma semana, com uso de um velho canivete e um caco de vidro, o menino pobre trabalhou numa lasca de madeira, na tentativa de fazer um facão imitativo. Suas mãozinhas incharam e sangraram, mas ele não desistiu.

Fez o facão que ele próprio achou muito bonito e que sentiu um orgulho imenso, quando o exibiu aos outros dois irmãos. Cuidadosamente, guardou o fruto do cansativo e até artístico trabalho numa “estronca” do paiol.

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Ai dispos-se a fazer a boneca, o trabalho que a irmã recusara fazer. Conseguiu alguns pedaçoes de panos velhos. Com palha de milho, fez uma espécie de bola. Cobriu com um retalho de peno branco a bola, fazendo a “cabeça” da boneca. Fez a seguir, com tiras de pano, quatro espécies de “tripas” à guisa de pernas e braços. Depois, o “corpo”. Pacientemente e espetando os dedos várias vezes com uma agulha, conseguiu armar a boneca. Recortou e fez o vestido. Com linha vermelha, “bordou” a boca e os olhos e, com linha preta, “bordou” o nariz e sombrancelhas.

Faltavam os cabelos. Apanhando a tesoura da vó às escondidas, conseguiu cortar mechas do pelego do arreio que o pai utilizava no cavalo. Costurou a lã na cabeça da boneca, concluindo o trabalho.

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Ele próprio não gostou da “obra”. Mostrou à irmã e esta também não apreciou, achando-a parecida com uma bruxa.

Mas o menino havia trabalhado muito.

Entendeu que deveria ficar naquilo mesmo. E ficou.

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Dias antes, preparou o espírito dos dois pequenos. Contou a estória de Papai Noel repetidas vezes, até que os dois acreditaram e se entusiasmaram.

Na véspera de Natal, convenceu os dois a deixarem as sandalinhas no paiol, para ir buscar no dia seguinte.

À noite, depositou o facão de madeira na sandália do menino e a “boneca” na da menina.

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O garotinho acordou primeiro, apanhou o facão e ficou todo feliz. A menina foi acordada pelo outro irmão, que exibiu o presente e contou sobre a boneca. A menina saiu correndo e quando chegou ao local ficou desapontada. Apanhou a “bruxa”, olhou-a bem e atirou-a longe, chorando e dizendo que “aquilo” não era boneca.

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O menino voltou a ficar triste ao ver frustrado todo seu trabalho e intenções. Ocultou-se atrás do paiol e chorou.

Esse menino pobre que executou os dois presentes de Papai Noel fôra o autor desta coluna diária.

Extraído do Correio de Marília de 19 de dezembro de 1974

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